quarta-feira, 29 de julho de 2009

Epidérmico

Não posso deixar de escrever sobre a posição tomada pelo presidente do IPS (Instituto Português do Sangue) a 17 de Julho sobre a (im)possibilidade de aceitação dos homossexuais como dadores de sangue. Desde há vários anos que o IPS vem excluindo das suas dádivas os homossexuais. Chegou este (ainda o presidente do conselho directivo era, outro, Almeida Gonçalves) há uns anos a pedir a opinião dos especialistas desta área (Imuno-hemoterapia) para que fosse incluída no inquérito pré-dádiva, que o IPS faz aos seus dadores, uma questão directa sobre a orientação sexual dos mesmos. Eu na altura tive oportunidade de expressar no serviço onde trabalho o meu desacordo com tal pergunta, pois a meu ver não tinha o menor cabimento do ponto de vista científico. Não sei se ela chegou ou não a ser incluída no inquérito escrito que o IPS faz aos seus dadores antes da dádiva. No Hospital em que eu trabalho essa pergunta não faz parte do inquérito e não temos em termos estatísticos mais dádivas com análises positivas que as estatísticas internacionalmente divulgadas. Provavelmente o número de dadores reprovados pelas mais diversas razões (e as razões são na ordem das centenas), até poderá ser superior à média. Não é agora importante analisar a fundo todos estes dados estatísticos, mas sim perceber se a atitude tomada pelo IPS na pessoa do seu presidente, Gabriel Arcanjo Branco de Olim (sim porque as pessoas têm nomes), é realmente correcta ou carece de fundamentos científicos.
Assim tentemos responder a estas perguntas de raciocínio básico para entendermos da aberração da medida implementada:
1) Será que só por ser homossexual se tem maior risco de contrair doenças transmissíveis pela transfusão?
Os últimos dados mostram que a percentagem de heterossexuais infectados pelo VIH é maior que a de homossexuais (quem sabe se por durante anos se fazer crer que a SIDA era uma doença de homossexuais).
Logo podemos depreender que a transmissão do VIH não tem nada a ver com a orientação sexual mas sim com comportamentos de risco.
2) Será que se for consumir drogas e.v. (endovenosas) tenho um maior risco de contrair doenças transmissíveis pelo sangue?
Sim 90% dos consumidores de drogas e.v. estão infectados com o vírus da Hepatite C (Será que este número vai depender da minha orientação sexual? Claro que não!).
3) Tenho um parceiro(a) sexual estável há 10 anos. Poderei correr o risco de poder contrair uma doença sexualmente transmissível?
Sim, se o seu parceiro(a) tiver relacionamentos sexuais com outra(s) pessoa(s) além de si(Independentemente de os parceiros sexuais serem homens mulheres ou ambos. Logo os riscos neste caso são para homossexuais, heterossexuais e bissexuais).
4) Serei mais consciente se for heterossexual?
Todos os dadores antes de darem sangue têm de ler informação sobre a dádiva e dos eventuais comportamentos (ou outros factores como por exemplo o uso de alguns medicamentos, ou estadia em zonas endémicas de paludismo, etc) que podem por em risco a saúde dos doentes a que se destina o seu sangue. A todos os dadores é dado um questionário escrito para que o dador responda às perguntas feitas, assinando no final, dizendo que compreendeu toda a informação que lhe foi facultada, que as respostas a que respondeu no inquérito são verdadeiras e que todas as dúvidas que tinha foram esclarecidas. Além disso antes da dádiva existe uma entrevista médica em que o médico reforça as perguntas feitas anteriormente (fazendo as perguntas que achar necessárias, com o objectivo de tornar a dádiva o mais segura possível) e esclarece com o dador dúvidas que possam surgir. Ao dador é dada a oportunidade de desistir em qualquer parte do processo sem ter de dar justificação alguma. O dador é informado de que se após a dádiva tiver conhecimento de algum dado que tenha esquecido ou de que tenha tomado conhecimento a posteriori, pode telefonar a relatar o facto 24 h por dia que terá sempre alguém que tome conta da ocorrência e que tome as devidas providências. Será que depois de tudo isto os heterossexuais vão ser mais conscientes que os homossexuais ou vice-versa?
5) Se eu tiver trocado de parceiro sexual ou tenha iniciado actividade sexual há menos de 6 meses posso dar sangue?
Tenha o(a) dador(a) a orientação sexual que tiver se iniciou actividade sexual, mudou de parceiro sexual ou teve um relacionamento sexual esporádico (que não com prostitutas(os)), fica impedido(a) de dar sangue durante 6 meses.
6) Durante quanto tempo não posso dar sangue se tiver tido um relacionamento sexual com um(a) parceiro(a) que tenha comportamentos de risco?
Se tiver um relacionamento sexual com parceiro(a) que seja ou tenha sido prostituto(a) ou que seja ou tenha sido consumidor de drogas e.v., enquanto esse relacionamento durar o potencial dador não pode ser dador de sangue. Se no entanto o relacionamento com estas pessoas terminar (quantas pessoas já terão tido relacionamentos sexuais com prostitutas ou com consumidores ou ex-consumidores de drogas e.v.), o dador pode vir a dar sangue passado um ano.
Se este critério existe e se realmente o relacionamento com estas pessoas é um relacionamento de alto risco porque é que o IPS, que evoca o alto risco dos dadores homossexuais, aceita estes dadores,?Por serem heterossexuais?
7) Todos os homossexuais são promíscuos?
Tal como os heterossexuais existem homossexuais promíscuos, assim como existem pares estáveis com relacionamentos de anos, estes relacionamentos do ponto de vista da dádiva de sangue, são os aconselhados. No entanto isso não quer dizer que só sejam aceites pessoas com relacionamentos de anos, porque senão não haveriam certamente dadores de sangue (a maioria das pessoas não vive toda a vida só com uma pessoa, nem tem durante toda a sua vida o mesmo comportamento sexual).
8) Mas o sangue não é todo analisado?
É verdade que o sangue é analisado para as doenças com maior expressão em termos de eventual transmissão pela transfusão. Mas não se poderia do ponto de vista prático e económico analisar o sangue para todas as doenças transmissíveis e para além disso existe o facto de haverem doenças emergentes para as quais ainda não existem testes disponíveis (caso das doenças priónicas, entre outras). Por essa razão e por os testes apresentarem diferentes períodos de janela (período em que a pessoa pode estar infectada mas ainda não ser possível com os testes existentes detectar a doença), é necessário que haja uma grande consciência por parte de quem dá sangue (mas essa consciência não depende certamente da orientação sexual).

O jornal "Público" noticiava a 31/07/2009 que o director do IPS em entrevista ao jornal "i" que os homossexuais que mintam (quanto à sua orientação - deduz-se) deveriam ser "ética, moral e criminalmente" processados.
Será que este senhor pensa que vive numa qualquer ditadura ou em Marte? Já que no seu perfil inscrito na página do IPS se descreve como Major-general, médico-aeronáutico (fica sempre bem), quando a sua formação em hematologia teria muito mais a ver com o cargo que desempenha.
Por quanto tempo mais iremos nós portugueses (independentemente da orientação sexual)aguentar isto?
Quando é que a homofobia deixará de ser em Portugal um problema epidérmico?