terça-feira, 16 de dezembro de 2008

No rescaldo (2) Histórias de todos os dias

1. Vou na rua, o meu vizinho vai uns passos mais `a frente, é maricas. Tem de ser maricas. Todos dizem que ele é maricas. Já tem 30 anos e não é casado. Ainda por cima é engraçado. Charmoso. Apesar de um pouco reservado. Ando cheio de curiosidade. Quando entra no café ficam todos a olhar para ele com ar de desafio. Ele toma o seu café, sai e finge não reparar nos olhares indiscretos.

2. Sai com o filho de manhã para o pôr na escola. A criança, de nome Miguel, está sempre muito bem cuidada. Chega à escola no 1º dia e a pergunta da nova professora é quase inevitável. Então e a sua esposa não veio também? Não. Eu estou divorciado. Ah, coitadinho…
O Miguel já tem 6 anos. Vive desde os três só com o pai, a mãe deixou de viver com eles quando soube que o Eduardo gostava de homens. Não é por isso que o Miguel não é o melhor aluno da escola.
A professora insiste, o senhor devia arranjar outra senhora.

3. Conheceram-se há 20 anos. Decidiram viver juntos há 15. Foram viver para um bairro nos arredores da cidade, naqueles prédios enormes onde ninguém conhece ninguém. Longe da família de um e do outro. O Armando era o mais divertido sempre com as suas piadas, no trabalho todos o adoravam. Até ao dia em que uma colega lhe perguntou:
Armando quando é que arranjas uma namorada?
O Armando ficou atrapalhado, ruborizou, mas arriscou responder. Eu vivo com o meu namorado. Desde esse dia os colegas evitavam-no e só a Cristina uma colega doutro departamento continuou a falar com ele da mesma maneira.

4. A Joana sempre adorou a família. Era a menina dos olhos do seu avô. Cabelo encaracolado, da côr do Sol, era a inveja das outras miúdas da escola. Conheceu a Mariana aos 17 anos. Aos 18 levou-a a casa e apresentou-a aos pais, que não ficaram muito contentes com a cumplicidade que se sentia existir entre as duas. Quando a Irene saiu a mãe veio sondar a Joana sobre a sua amizade. Após muita insistência a Joana teve de admitir que estava apaixonada pela amiga. Os pais não compreenderam a situação e deram-lhe um prazo para ela resolver a situação ou deixaria de ser a sua filha.

5. O Henrique e o João vivem juntos há 13 anos. São um casal muito divertido, os vizinhos adoram-nos. Os pais do João ao princípio não entenderam bem o relacionamento dos dois mas ao fim de 5 anos e após terem percebido que o relacionamento era sério aceitaram bem a coisa. A mãe do Henrique sempre soube de tudo e deu a maior força. Hoje fica muito feliz de os ver contentes a comemorar mais um aniversário do seu relacionamento. Há uma semana no trabalho do João uma colega estava a mostrar as fotografias do seu casamento há um ano. Este sentiu-se de repente triste. Não sabia se por nunca poder casar ou se por nunca poder mostrar as fotografias.

6. O Manuel é uma autêntica “flor”. É uma verdadeira loucura o seu balançar de anca quando anda. Eu penso que nem as raparigas lá da escola conseguem movimentar-se assim. É no entanto uma simpatia, apesar de não ter papas na língua e dizer sempre tudo o que lhe vem à cabeça quando lhe fazem chegar a mostarda ao nariz.
Um dia chegou cabisbaixo e toda a gente na escola ficou admirada de o ver assim, mas ele não deu nenhuma razão para acontecimento. Soube-se depois por uma vizinha que ele tinha sido enxovalhado no bairro onde vivia, por um grupo de outros adolescentes que lhe bateram enquanto gritavam – Cá no bairro não queremos bichonas.

Estas são apenas algumas histórias parcelares de acontecimentos que acontecem aos milhares por este país fora todos os dias. A estas humilhações a maioria dos nossos deputados respondeu com uma frase “em tempo de crise há coisas mais importantes para resolver”. Foi adiada mais uma vez a eleição de milhares de pessoas deste país ao estatuto de igualdade social. À palavra de ordem deveres iguais direitos iguais, a resposta foi a pessoas “diferentes” direitos diferentes.
Temos todos que pensar se podemos continuar a eleger senhores deputados que se dão ao luxo de continuar a dizer que pessoas com orientação sexual diferente têm de ser considerados portugueses com direitos diferentes.
Realmente não são estes senhores que nos resolvem esta crise nem nenhuma outra.

A.Barra

No rescaldo, em tempo de crise

Muito foi dito e escrito nos últimos dias por todos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e sobre a adopção de crianças por casais do mesmo sexo (homossexuais que temos que chamar as coisas pelo nome próprio).
Mas do que estivemos nós todos a falar?
Estivemos a falar sobre se o casamento é ou não uma instituição que pela sua génese é unicamente heterossexual.
Estivemos a falar sobre se as crianças deveriam crescer e desenvolver-se ou não exclusivamente por casais que tivessem um modelo masculino e outro feminino.
Estivemos a falar do momento adequado ou não para debater estes temas.
Falámos, falámos, falámos…
E se isso já foi muito bom (dirão alguns) para este país onde cada vez se fala mais e se acerta menos a verdade é que no final e em termos práticos ficou tudo na mesma (como muito boa gente pretendia).
Perguntarão vocês, mas para que vens tu de novo falar numa coisa que já está enterrada?
E quando nós temos assuntos tão mais importantes na nossa vida para resolver.
Está aí uma crise internacional e nós temos que sair disto com urgência.
Pois esta crise, não é mais que uma crise do sistema, como já houveram outras que como vocês sabem sempre foram ultrapassadas.
A pergunta que fica é: À custa do sacrifício do suor e das lágrimas de quem, é que nós as conseguimos ultrapassar?
Pensem por favor e conscientemente respondam, de quem?
Quem é que tem de contrair ainda mais as suas parcas economias?
Todos nós, os menos favorecidos, tenhamos filhos ou não (mas com filhos em idade escolar a coisa piora), vivamos com um homem ou uma mulher.
Mas não é fácil sentir a injustiça de trabalhar todos os dias, afincadamente, muitas horas (ou nem ter a oportunidade de o fazer por não conseguir arranjar emprego), e saber que não trazemos para casa o suficiente para as nossas necessidades básicas.
Claro que é fácil para os políticos que têm com certeza muita responsabilidade nesta crise (e que não a sentem nem por perto), venham dizer-nos que não têm tempo agora de resolver um problema “menor” como é o do reconhecer que nós somos todos pessoas iguais, com direitos iguais.
O que os “nossos” políticos (vá lá que não todos), eleitos com os nossos votos acabaram de dizer, no último dia 10 de Outubro (que provavelmente vai ficar conhecido como o dia da segregação), é que entre os filhos e filhas de Portugal sejam pobres, empregados, ricos, jovens, desempregados, velhos, pretos, analfabetos, brancos, gordos, ciganos, magros ou letrados, entre todos, há pessoas diferentes. E são diferentes porque têm direitos diferentes, com responsabilidades e obrigações iguais.
Pois é bom que estes senhores que negaram mais uma vez aos cidadãos do seu país a possibilidade de serem todos iguais em direitos e deveres, e deixaram de o fazer mais uma vez. É bom, que não venham dizer mais tarde, se alguma vez (mesmo que seja moralmente) tiverem que responder pelo sofrimento de milhões de concidadãos seus, que não são responsáveis de nada tal como não são responsáveis pela crise que nos assola.
É bom que todos aceitemos de vez que apesar de sermos todos diferentes, vivemos todos no mesmo país e que não vamos ser mais felizes se ao nosso lado viver alguém que está infeliz, e a quem possamos ter estendido a mão e não o tenhamos feito. Não podemos continuar a pensar que temos alguma superioridade moral sobre quem não tem a mesma orientação sexual que nós, porque estamos a errar. Como é que aceitamos ter responsáveis políticos que dizem ao seu País e aos seus eleitores que são melhores que os outros só porque não vivem com pessoas do mesmo sexo? Como será que eles vão explicar aos seus familiares, amigos, conhecidos o seu voto? Será que alguma vez admitirão que votaram por medo a que lhes fosse retirada a imunidade sexual?

A.Barra